Capítulos 17 – 18

  • Coração de Veado

Tom: A

Afinação: E

Intro: Db A Ab F# (2x)

Db A Ab

Solteirões de bombacha

Encarnando o Velho Vyscacha

Com o nome do pai, lobisomens

Db A Ab F#

Só na mesa da mãe comem

Db A Ab F#

Coração de veado

Db A Ab

Coração de veado

D       E        A

Compadres que mateiam vendo a borboleta voar

São deuses da minha imagem cativa e vulgar

Db A Ab

Tiozão eremita

Mestre que não medita

Cujo sonho na vida

Db A Ab F#

É livrar as crianças da Anitta

Db A Ab F#

Coração de veado

Db A Ab

Coração de veado

Capítulo 17

Nesta época tu receberias no teu apartamento alugado no Centro Histórico de Porto Alegre, duas garotxs nascidxs nos dias 26 e 27 de Janeiro, sendo que tu nascera no dia 28 de Janeiro, por convite de tua irmã, Laura. Seria o acaso ou predestinação? Passariam cerca de seis meses morando juntos, pois o apartamento de Alex (Alexandra) inundara e ela havia pouco se separado de um relacionamento com uma mulher. Alex é uma estado-unidense que ficou enraivecida com a vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, fumava cigarros e adorava chimarrão. Ela trouxera consigo a gaúcha, Luíza Eltz e o mineiro, Lucas Queirós, além de um Super Nintendo e um cachorro Golden Retriever que te faz companhia nas caminhadas diárias ao cachorródromo na Praça da Ponte de Pedra. Eltz é uma garota judia que rompera com o judaísmo e havia lançado um álbum musical chamado Travessia dos Mundos. A música foi o que xs uniu. Juntos vocês três tocaram os mais variados estilos musicais e se divertiram muito com as mais variadas pessoas que frequentavam aquele encontro zodiacal, participando de três eventos musicais na Cidade Baixa sendo o terceiro promovido por vocês mesmos no bar onde tu trabalhavas durante algumas noites da semana, o Riff.E Bar, onde tu apresentara-se pela primeira vez como Farizeu & Os Hipócritas, contando contigo no vocal e guitarra, Pocahontas na bateria, Cadré na gaita de boca e um amigo de ‘Poca’ no baixo. Além disso, apresentaram-se também pela primeira vez naquela noite os caras da Top Chop, uma banda de rock instrumental de POA; e Alex e Luíza Eltz num show intimista de violões e vozes.

Mas estes dias também eram dias de delírios religiosos e de muito conflito com tua irmã, Laura, assumidamente lésbica; e outros problemas familiares como o estado de saúde de teu avô, Wilmar. Tu rezaria para que o destino reaproximasse teu caminho junto ao dele, um ferreiro que dedicara sua vida à família. Tu és um dos poucos netos nascidos homem e por isto ele te dera instruções ao longo de toda a vida sobre como se comportar frente aos homens da cidade e sobre a divisão generificada do trabalho.

Certa vez, na oficina mecânica de tua família, quando começaste a trabalhar aos 14 anos e varrera o estabelecimento, ele te dera R$10,00 por “não ter feito nada”, só para ver-te irritado e te testar. Mas só depois que partira para além-vida foi que podes entender o valor daquele homem, por mais patriarcalista que fosse, Wilmar foi um homem de seu tempo, e era aquariano que nem tu. A relação entre vocês dois sempre fora conflitante. Ele fizera pouco caso quando lhe disse que iria para a Capital em busca do sonho de ser artista. 

Ter-te envolvido com Martha fizera-te sentir-se como se pudesse ser um Farezin na grande Porto Alegre. Tentava sê-lo, mas isso teve custos altíssimos quando o dinheiro se acabou e fostes assaltado diversas vezes por batedores de celular. De todo o modo, somente depois de internado compulsoriamente que esta paixão avassaladora pode enfim respirar. E isso acontecera quando vieste para Constantina dizer ao teu pai que Martha havia de ser tua esposa a todo o custo, nem que fosse necessário vender teu carro. Obviamente, o tom dessa conversa foi bastante exaltado e dentre outras loucuras, acabaste sendo internado compulsoriamente. A Brigada Militar e a oficial de justiça vieram até tua casa enquanto tu lavavas a louça entregar o ofício e levar-te até o Hospital Comunitário de Sarandi. 

Todo o sábado havia visitas e teus pais cumpriram-nas religiosamente. Uma infinidade de remédios foi ministrada diariamente e sentias espasmos constantemente. 

A internação compulsória foi realizada por que o teu nível de embotamento havia excedido o considerado normal. No Hospital Comunitário de Sarandi passastes um mês. Raúlu seguira o carro que te levava e entregara-te seu número telefônico. Voltando de Porto Alegre, certa vez, ele dera-te uma carona e no percurso desabafara sobre a pedofilia que seu pai havia cometido.

Na volta para casa em Constantina, videogame, livros, Grêmio, oficina e aplicativos de matchs na internet eram teus companheiros. Não tivera escolha, o tempo deveria ser deixado passar, até que tu conquistasses uma estabilidade emocional.

Passaste uma semana inteira decidindo se voltaria ou não para a Nabucodonosor na casa do Prego, uma espécie de ZAP. Prego, como de costume bebia diariamente. Foi mais ou menos por aí que tua fase vegana terminara e tu achavas que a compulsão dele em beber tinha a ver com as matérias que fizeste sobre ele para o jornal de Carazinho.

No dia do teste no jornal, um ano antes das Jornadas, te foi passada a pauta de cobrir as viagens de ônibus na rodoviária da cidade. Lá encontraste Prego indo para Santa Maria visitar um amigo. Perguntaste a ele se tu poderias realizar a entrevista e pediu para demonstrar-te um pouco de sua arte de mangueio no semáforo. A foto ficara linda e fora contra capa do jornal e tu conseguiste o emprego. Aconteceu que Prego perdeu o dele por causa da foto, pois estava matando o serviço.

Ainda na casa dele, tu tiveste contato com Bhreckler, acadêmico da História pra quem deste o livro de contrainfo Cronologia Maldita.

Na vitrola tocava Raul o tempo todo. O pai do Prego era um raulsexista. Também havia por lá algumas preciosidades como o Rubber Soul dos Beatles e os anarquistas da Agrotóxico.

Já na casa de Henna passaste o tempo em que ficaram entrelaçados pelo hedonismo de seus seres. A chaga ainda está aberta. Ela não te deixava fumar, mas tentou colocar fogo nos teus livros. Foi lá que entraste em contato com os Harrison e confiaste piamente que o brother McCartney receberia tua ligação. Nas paredes da oficina escreveste “Deus, destruís os meus sonhos, livrai-me dos meus irmãos, abençoai meus pecados. Deus, dorme com Deus”, mas riscaste com uma linha tênue que nem a primeira faixa de Chaos and Creation In The Backyard, Fine Line.

Capítulo 18

Jloc dissera que em vinte dias estaria de volta. Faltavam apenas alguns meses para a eleição presidencial de 2018 e tu disseste em alto e bom som “Que se foda o Bolsonaro!” E ele simplesmente lamentou pois sabia o que um mandato de extrema direita faria com os indígenas. Mas tu não. Então pediste a ele para ficar na Nabucodonosor em sua ausência.

Lá pelo trigésimo dia subiste na construção dos fundos e deitaste no chão do segundo andar para sentir se o avião estava chegando. Mas sua mulher, Ana, interpretara através das cartas que ainda era cedo demais para ele voltar à “nave”.

Enquanto isso o tio policial de Jloc estava sempre à espreita trazendo lenha ou aipim e tu tinhas a sensação de estar sendo perseguido. A vizinho ao lado, Zelda, por sua vez repartia comida contigo em troca de levar seus cachorros para passear. Ela tinha dois ainda bem jovens, um era pitbull e o outro, pastor alemão, além de gatos que viviam pulando a cerca e lá na construção aos fundos eles se reuniam para conversar. Não conseguiste ter uma boa relação com o gato da Nabuk. Ouvias os discos, lias os livros e fazia fogo nos friorentos dias de Julho de 2017. Tentaste também arrumar alguns bicos na vizinhança. Certa vez ela te convidara para um almoço e te contara sobre como foi viver nos pueblos da Espanha.

No ensino fundamental aprendeste a bordar e bordaste a bandeira da Alemanha: amarela, vermelha e preta. Quando Jloc fora te buscar tu puxaras o violão e fizeram uma cantoria na tenda próxima à entrada da entrada do condomínio. Ao chegar na “nave”, estendera a bandeira no varal, tentando provocar Jloc.

Depois que Jloc fora para o Cerrado tu ficastes cuidando da “nave”, então cortara a parte amarela da bandeira e ergueras a bandeira do socialismo libertário: vermelho e preto. Também tentara montar um letreiro com latas de cerveja escrito LOKI, mas não conseguiras terminar sua produção.

Acordavas cedo, pegavas a bicicleta, pedalavas até a “Escandinávia”, local onde havia pinheiros e era muito frio e voltavas de lá com a sacola cheia de pinhas e grimpas. Fazias pão de panela, comias abacates do terreno, cozinhavas lentilhas, feijão, arroz e tomavas café e chimarrão.

Ouvistes pela primeira vez na íntegra discos clássicos do rock como Quadrophenia do The Who, The Number of The Beast do Iron Maiden e Rolling Stones.

Sentias falta de Flora Fauna, garota que cuidava da “nave” antes de ti. Vocês tiveram um lance juntos, mas tu ficaste sabendo que ela haveria de encontrar outro alguém para vida inteira.

Depois de quarenta dias lendo a Política do Rebelde de Michel Onfray dentre outros clássicos anarquistas, tu decidiras deixar a Nabucodonosor do mesmo jeito que vieras: a pé. Parecia uma ideia sensata, e seria, se pelo menos não tivesses parado de tomar teus remédios. A bipolaridade e a esquizofrenia ainda estavam adormecidas. 

A Nabucodonosor continuaria à deriva, mas claro que algumas modificações foram feitas ao longo desta quarentena, coisa que até o momento ainda não sabes como Jloc reagiu ao voltar do Cerrado. Nas paredes tu escrevera “Anarkia” e criara o jogo “Capavasnavas?” que consistia em riscar nas paredes da nave a cada novo passo de cada jogador; “reorganizaras” a biblioteca e a discoteca e consertastes violões. 

Dias solitários em que te tornaras imperdoável por pecar contra o Espírito Santo. Tudo isso mexera com a tua cabeça de forma religiosamente anarquizadora, o anarquismo catolicista que Mikhail Bakunin escrevera há cerca de duas centenas de anos atrás.

No caminho de Viamão à Porto Alegre durante a noite, tu largaras tudo menos as cuecas. Um homem encostara o carro próximo a ti perguntando se tu tinhas sido assaltado. Até mesmo a Brigada Militar tentara entender o que se passava contigo e tu responderas que estavas indo para o bairro Farrapos lutar pela revolução. Funcionou! Devido à chuva tentaste dormir entre os sacos de ração animal de uma agro veterinária, mas não resististes e fostes colocado a correr abaixo de tiros depois de bater na porta da casa pedindo roupas. Provavelmente, ao deixar de ministrar lítio, tua cabeça perdera todos os freios.

“Não deu em outra!” Acabara dormindo no meio do mato naquela noite abaixo de uma enxurrada de delírios persecutórios e de chuva calma também. Até mesmo a Nabucodonosor parecia estar contra ti, quando tiveste acesso às fotos de Jloc e em uma delas viste um cachorro com um dedo humano na boca. Se era um dedo humano ainda não sabes afirmar, mas que parecia, parecia. O Pequeno Gigante aparecera com sua Intruder e trouxera ácido lisérgico.

O que poderia ser uma grande decepção, na verdade tornou-se uma grande benção. Leknaat viera te visitar durante a madrugada embaixo dos galhos de uma árvore rasteira. Durante sua aparição o local se transformou no Santuário de Aquário e Leknaat chorava, pois, a runa que tu receberias seria a Seladora de Almas, tendo em vista que teu braço esquerdo sempre foi defeituoso devido a um alongamento dos ligamentos do ombro. Assim, de joelhos em frente ao Santuário ouviste estas palavras:

Na tua mão esquerda tens a mais forte não verdadeira runa da Terra, Gaya, que auxilia o partido com magias de terreno e ataque. No polegar está o Falo; no indicador a FAG (ocupação anarquista); dedo médio está Johnny Ramone e sua contradição; Byafrô, que dispensa comentários, no dedo anelar; e Eggman no mindinho. Na tua mão direita a Runa Verdadeira Seladora de Almas. No polegar está Belchior, o bardo; no indicador, a Academia; no médio os Vestibulandos (ou Vespertinos); e no mindinho está Elza, a gunshooter. Na cabeça carregarás a runa do Aguaceiro que oferece magias de cura e ataque.

Depois destas palavras pudeste ver uma mulher com roupas do oriente-médio chorando, debruçada na tua frente na entrada do Santuário. Rezaste por todas as mulheres que amas e pediste perdão, prometendo jamais ter filhos até que o ciclo da pedofilia se encerrasse.

Foi possível que observasse o que seria uma espécie de pedras primitivo-futuristas que se moviam lentamente, como grandes seres autômatos pré-históricos entre os galhos e folhas da árvore. Provavelmente o gatilho alucinógeno foi disparado devido às plantas que comeras: em suma, frutos de cactos. Uma madrugada memorável. Não conseguistes dormir, mas o show continuava e de manhã cedo assistira desenhos animados diretamente da movimentação do vento que batia na árvore. Com fome e semi-nú tentaras voltar para a Nabucodonosor, mas a Brigada Militar prendera-te e fostes levado à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Viamão para em seguida ser buscado por teus pais e assim voltar para Constantina outra vez.

Se meu mestre recusas me condenar, morre Ele em meu lugar